terça-feira, 5 de maio de 2009

VEIAS ABERTAS
CRISE DO SENTIDO

Na era vitoriana era proibido fazer menção às calças na presença de uma senhorita. Hoje em dia, não fica bem dizer certas coisas perante a opinião pública:

O capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado;

O imperialismo se chama globalização;

As vítimas do imperialismo se chamam países em via de desenvolvimento, que é como chamar de meninos aos anões;

O oportunismo se chama pragmatismo;

A traição se chama realismo;

Os pobres se chamam carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos;

A expulsão dos meninos pobres do sistema educativo é conhecida pelo nome de deserção escolar;

O direito do patrão de despedir sem indenização nem explicação se chama flexibilização laboral;

A linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidade fosse a maioria;

Em lugar de ditadura militar, se diz processo. As torturas são chamadas de constrangimentos ilegais ou também pressões físicas e psicológicas;

Quando os ladrões são de boa família, não são ladrões, são cleoptomaníacos;

O saque dos fundos públicos pelos políticos corruptos atende ao nome de enriquecimento ilícito;

Chamam-se acidentes os crimes cometidos pelos motoristas de automóveis;

Em vez de cego, se diz deficiente visual;

Um negro é um homem de cor;

Onde se diz longa e penosa enfermidade, deve-se ler câncer ou AIDS;

Mal súbito significa infarto;

Nunca se diz morte, mas desaparecimento físico;

Tampouco são mortos os seres humanos aniquilados nas operações militares: os mortos em batalha são baixas e os civis, que nada têm a ver com o peixe e sempre pagam o pato, danos colaterais;

Em 1995, quando das explosões nucleares da França no Pacífico Sul, o embaixador francês na Nova Zelândia declarou: “Não gosto da palavra bomba. Não são bombas. São artefatos que explodem”;

Chama-se Conviver alguns dos bandos assassinos da Colômbia, que agem sob proteção militar;

Dignidade era o nome de um dos campos de concentração da ditadura chilena e Liberdade o maior presídio da ditadura uruguaia;

Chama-se Paz e Justiça o grupo militar que, em 1997, matou pelas costas quarenta e cinco camponeses, quase todos mulheres e crianças, que rezavam numa igreja do povoado de Acteal, em Chiapas.


POST POST

O carteiro acrescenta:

Exclusão é o nome dado ao exílio social, cujo resgate alguns chamam pragmaticamente de "assistencialismo".

Garoto-propaganda de alcolismo é conhecido como fenômeno.

O texto do mestre Eduardo Galeano, do livro De pernas pro ar, editora L&PM, foi publicado na Carta Maior.
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2 comentários:

Carlos Eduardo da Maia disse...

O problema de Galeano é que ele pensa com ressentimento. Tadinho.

Eduardo Martinez disse...

"Re-sentimento". Gostei, "re-sentir", sentir uma ou tantas vezes quantas forem necessárias. É como "re-pensar, re-fazer, re-lutar". Antes de pensar e escrever sobre qualquer situação é altamente recomendável.

O carteiro tá quase pedindo pra preparar "aquele feijão preto" que ele tá quase voltando. Falta só atravessar mais um rio Uruguai (a pé hoje em dia).

Há braços Maia.