terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

INÉDITO NO BRASIL
COMO A CIA USOU GRUPO CATÓLICO
PARA PREGAR CONTRA JANGO

WASHINGTON - O livro foi lançado recentemente nos Estados Unidos. Ainda não tem tradução brasileira. O autor é Hugh Wilford. "The Mighty Wurlitzer, How the CIA played America", descreve a guerra cultural travada entre a União Soviética e os Estados Unidos por corações e mentes durante a guerra fria.

Primeiro é preciso descrever o contexto. Havia mesmo o famoso ouro de Moscou? Sem dúvida. Os soviéticos financiaram aliados em todo o mundo, inclusive no Brasil. Enquanto isso a CIA desenvolveu uma sofisticada operação que envolvia o financiamento de organizações de fachada. Embora o acesso aos documentos da época ainda seja bastante restrito, Wilford fez o melhor trabalho até agora sobre as operações da CIA no período, especialmente na guerra cultural.

O mais surpreendente do livro é demonstrar o esforço da CIA para recrutar gente da esquerda não comunista para travar a guerra ideológica. De início os liberais americanos achavam que era patriótico colaborar com o país. Em busca de controle sobre as organizações, a CIA cooptava apenas algumas lideranças. Elas sabiam de tudo: da origem do dinheiro e das metas a cumprir. Outras lideranças e a militância ficavam no escuro. A feminista Gloria Steinem, por exemplo, serviu ao Independent Research Service, Serviço Independente de Pesquisa, que ela sabia ser financiado pela CIA. Os programas incluíam atividades culturais envolvendo gente famosa como o ator Bing Crosby e a cantora Nina Simone.

Organizações feministas de defesa dos direitos civis, dos negros, estudantis e sindicatos foram "infiltrados" ou simplesmente concordaram em prestar serviço em troca de financiamento. Seminários foram promovidos, filmes foram produzidos e delegações de artistas e escritores americanos viajaram o mundo por conta de programas clandestinos. Há doze páginas do livro dedicadas ao Jornalismo.

Mas eu vou começar contando para vocês sobre o que interessa diretamente ao Brasil, onde a operação clandestina mais importante foi intermediada por um multimilionário devoto do catolicismo, J. Peter Grace e financiada em parte por um empresário que não é diretamente identificado no livro. Não era apenas uma questão de fé. Grace tinha interesses econômicos na América do Sul em transporte, açúcar e mineração.

Diz o livro sobre ele: "Um homem decidido, ele sempre usou dois relógios, um mostrando o hora local de onde estava e outro com a hora da sede da empresa, em Nova York. Ele também carregava um revólver na cintura".

Católico devoto, ele era integrante de uma organização secreta chamada Os Cavaleiros de Malta, através da qual exercia grande influência na hierarquia católica dos Estados Unidos. Da organização fizeram parte dois diretores da CIA, William Casey e John A. McCone.

Grace foi o intermediário entre o então diretor da CIA, Allen Dulles, e o padre Patrick Peyton, fundador da Cruzada do Rosário, dedicada a promover a Virgem Maria. Os dois pediram 500 mil dólares para financiar as atividades iniciais da Cruzada na América do Sul. Dulles gostou do projeto apresentado e convocou Grace para um encontro com o então vice-presidente Richard Nixon, na Casa Branca (ele serviu no posto de 1953 a 1961). Nixon já conhecia o multimilionário Grace, que havia apresentado meses antes a dois outros empresários com grandes interesses na América do Sul, David Rockefeller e Juan Trippe, o dono da empresa de aviação PanAm.

É óbvio que os empresários tinham interesses econômicos em jogo, além dos ideológicos e religiosos.

A Cruzada para a Oração da Família, de Nova York, foi escolhida como organização de fachada. O projeto-piloto custou 20 mil dólares e aconteceu em La Serena, no Chile. Diante do sucesso da mobilização dos católicos chilenos, em 1960 o padre Peyton recebeu a promessa de financiamento de 100 mil dólares para mobilizar os católicos de Caracas. O comício final da Cruzada na Venezuela atraiu 600 mil pessoas. Em Bogotá, a multidão chegou a 1 milhão de pessoas. O objetivo central do projeto era derrotar candidatos comunistas em eleições, promovendo políticos e governos favoráveis aos Estados Unidos.

Logo depois do comício de Bogotá houve mudança repentina de planos. O empresário Peter Grace, intermediário entre a CIA e o padre católico, informou Peyton que o alvo então eram o Recife e o Rio de Janeiro, numa campanha que começou em 1962.

Traduzo o trecho mais importante referente ao Brasil, que aparece nas páginas 190 e 191:

"A Cruzada tinha desenvolvido em 1962 uma técnica de evangelização chamada Missão Popular, que envolvia o recrutamento local de técnicos que viajavam com equipamento para mostrar filmes religiosos feitos na Espanha em projeções ao ar livre, com comentários de catequizadores laicos. À técnica foram acrescentados efeitos especiais espetaculares desenvolvidos para apelar à população dos centros urbanos como o Rio de Janeiro, onde a famosa estátua do Cristo, no Corcovado, foi decorada com um rosário iluminado de trinta metros e uma cruz de sete metros de altura. Quando Peyton pregou na cidade, em 16 de dezembro de 1962, 1,5 milhão de brasileiros vieram ouví-lo”.

Um ano depois, na Festa da Imaculada (8 de dezembro de 1963), também declarado o Dia da Família pelo presidente João Goulart, a Cruzada patrocinou uma transmissão de TV especial desde o Rio de Janeiro, estrelando entre outros Bing Crosby, a estrela do futebol Pelé e Agostinho dos Santos, que se auto-definia como "o rei da bossa nova do Brasil", que cantou a versão em samba da Ave Maria. O programa, que também foi mostrado em outros países da América do Sul, atingiu a maior audiência da história do Rosário da Família.

Esses feitos espetaculares foram obtidos num período de crescente crise política no Brasil, que culminaram, em março de 1964, com a derrubada do presidente Goulart em um golpe militar liderado pelo chefe do Exército, general Humberto Castello Branco. Goulart tinha causado insatisfação em Washington ao adotar políticas como a de indicar socialistas para o ministério e a CIA estava profundamente envolvida nos eventos que levaram à derrubada dele, através de ligações com grupos locais da direita e organizações americanas como o AILFD (Instituto Americano para o Desenvolvimento do Trabalho Livre).

É naturalmente impossível dizer com certeza qual foi o efeito da Cruzada do Rosário da Família no humor político do Brasil, mas vários observadores bem colocados dizem que foi considerável. De acordo com uma autoridade eclesiástica, "o Rosário consolidou as ligações que existiam entre as aspirações do povo e a vigilância patriótica das Forças Armadas”.

"Eu admiro a Cruzada", o próprio general Branco anunciou pouco depois do golpe. "Desde o grande encontro do Rio de Janeiro eu dou crédito à Cruzada pela formação da opinião pública brasileira para ter a coragem de apoiar a Revolução de 31 de março”.

Patrick Peyton estava falando a verdade quando disse a seus superiores que "muito crédito é dado pelos grandes líderes da Igreja e do Estado no Brasil à Cruzada do Rosário na derrubada do governo Goulart".

O Azenha publicou ontem (11/02) no VI O MUNDO.

Na última atualização, hoje (12/02), o título é
Sem saber até Pelé foi usado (indiretamente) pela CIA.

A foto é mais uma da série printscreenizada pelo carteiro da Globo.sem.

Acervo do Instituto João Goulart.
.

Nenhum comentário: